Edital MCT/CNPQ 14/2008 Universal Processo 470333/2008-1



23 de outubro de 2011

LE BONHEUR EST LÀ-BAS, EN FACE

Jean-Pierre Beaurenault e Pedro Silva "Calango"
Quinta-feira passada, 20 de outubro, ocorreu no PAPOÉTICO a exibição do documentário “LE BONHEUR EST LÀ-BAS, EN FACE”, um média metragem filmado no Maranhão na década de 70 (com cenas de São Luís e da comunidade quilombola rural de Ariquipá – Bequimão), em película 16mm, do cineasta francês Jean-Pierre Beaurenaut.

Na oportunidade tivemos um breve debate sobre o filme. Aspectos estéticos e filmográficos foram comentados pelo cineasta Murilo Santos. A exibição contou com a presença de duas pessoas que residiram na comunidade de Ariquipá e tem relações de parentesco com o líder comunitário Pedro Silva "Calango", já falecido (na foto, acompanhado do cineasta francês).

Cabe ressaltar alguns pontos concernentes as análises sócio-etnológicas conduzidas pelo autor na construção da narrativa do documentário. Infelizmente este aspecto não foi muito desenvolvido no debate, que se seguiu a exibição do filme. Nesse espaço aproveitamos a oportunidade para levar a frente uma breve reflexão de Antropologia Crítica, que se faz necessária.

Jean-Pierre Beaurenault filmou alguns personagens selecionados da comunidade de Ariquipá, remanescentes de um antigo engenho e fazenda de cana de açúcar no município de Bequimão que se deslocaram para São Luís, buscando melhores condições de vida. O subemprego na Capital do Estado surge como única alternativa para escapar das condições adversas, no que hoje se chama de comunidade quilombola.  O título do áudio-visual “Le Bonheur est Là-bas, em face” reproduz a frase expressa por um dos personagens ao justificar seu êxodo para São Luís: “a felicidade está lá na frente”.

Ao assistir ao filme logo se destaca o esforço do cineasta em explicitar as formas de exploração econômica sob as quais estão subordinados, ainda hoje – segundo depoimento e testemunho das duas pessoas presentes – os membros da comunidade de Ariquipá. A comunidade rural é apresentada com traços de decadência econômica de longa data; fruto da falência e destruição da antiga fazenda de Cana-de-Açúcar, montada por colonizadores há mais de duzentos anos atrás. Abandono das máquinas, abandono dos seres humanos... O filme retrata de modo sensível, convincente e dramático as condições de pobreza e miséria no Grande Sertão brasileiro. Registra a presença de crianças sem escola, subnutridas, implicadas na produção diária de alimentos precários e carentes de nutrientes. A dieta de proteínas é rarefeita e percebem-se as bases rudimentares de produção alimentícia e de moradia. As mulheres e as crianças passam as maiores agruras, e os homens seguem a estrada atrás de dias melhores na capital. Cenas pungentes de quebradoras de coco babaçu, lavradores, camponeses, extrativistas, etc., isolados da produção industrial, e do desenvolvimento da sociedade brasileira, desde a década de 1970! Exploração econômica violenta, aviltante e escandalosa... que persiste!
As bases de análise sócio-etnológicas costuradas na argumentação narrativa do filme se estrutura evidentemente numa Antropologia Econômica de cunho marxista. O autor revela com detalhes minuciosos as formas de reprodução de um estágio primitivo de exploração econômica de homens e mulheres em estado de espantosa pobreza. Passado mais de trinta anos, e pouco mudou! Como foi testemunhado por uma das pessoas presentes na exibição, a comunidade apenas recentemente recebeu a primeira ligação de energia elétrica!
A narrativa do cineasta foi montada a partir de uma Antropologia Dialética, considerada por alguns antropologistas de plantão como “evolucionista” ou “etnocentrista”. Antropologistas ditos “relativistas”, que se classificam como pós-modernos, acusam a Antropologia Econômica de base analítica marxista de ser uma Antropologia ultrapassada, enviesada, anti-relativista e não culturalista.
Podemos colocar, a partir desse filme, uma reflexão interessante acerca dos alcances de uma Antropologia etnicista, predominante na atualidade. Hodiernamente muitos antropologistas defendem a idéia de que os grupos remanescentes de antigas fazendas escravocratas sejam grupos étnicos, e que esses grupos, classificados como quilombolas, possuem ‘cultura’ diferente dos caboclos e sertanejos regionais brasileiros. E também consideram ‘evolucionista’ (que na boca desses letrados soa como um xingamento terrível) toda Antropologia que revela as bases econômicas da exploração do homem pelo homem, tanto exógena, quanto endógena. Ouvimos a acusação de que o cineasta Jean-Pierre Beaurenaut foi etnocêntrico ao não considerar a importância das manifestações culturais e religiosas, tendo supostamente desconsiderado as festas e ritos comunitários, deixando de definí-los como traços diacríticos ‘etnicos’. Hoje a moda dominante entre os pseudo-acadêmicos é supervalorizar os 0,00000001% de ‘diferença’ cultural, definindo como étnico, esses micro-signos de diferença.  Etnia é um pseudo-conceito inventado numa Europa colonialista, e esses antropologistas não se dão ao trabalho de fazer a história e a epistemologia desse termo. Essa fixação neurótica nas dessemelhanças minimalistas, só servem para ocultar as formas de exploração econômicas que existem fora e dentro dessas comunidades. Lamentável postura mistificadora que insiste em supervalorizar um culturalismo ingênuo - misturado ao folclorismo catolicista - que nega a força política de uma necessária Antropologia Crítica. Ao atacarem a Antropologia Dialética, esses antropologistas fazem a apologia da pobreza, através da museologização da miséria e da patrimonialização do atraso. Nutrem a crença na redenção econômica dessas comunidades através de um turismo eco-etno sustentável!  É uma mistura de nostalgismo e passadismo regressivo, com um antropologismo turistificado e pós-modernista.
O filme em questão é uma verdadeira peça de denúncia da miséria e da exploração humana. É uma denúncia esclarecida das bases retrógradas de uma sociedade complacente com a miséria de muitos brasileiros. No fundo, o etnólogo-cineasta se investe de fortes e sólidas análises sociológicas sobre os fundamentos do êxodo rural no interior do Estado do Maranhão. Mostra como as manifestações ditas ‘culturais’ atuam como ‘narcóticos’ para o alívio passageiro, realimentando com poucas medidas as energias do grupo comunitário, a fim de manter-se vivo naquelas condições econômicas e sociais deploráveis.
A Antropologia Dialética brasileira merecia um filme dessa natureza, com essa paixão humanista: um filme desconcertante, revelador, sensível e indignado. A crítica antropológica heterodoxa, que rema contra a maré modista pos-modernista, irresponsável e negligente, tem nesse documentário um monumento de lucidez e perspicácia profunda.
Jean-Pierre Beaurenault merece todos os nossos aplausos!

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