Edital MCT/CNPQ 14/2008 Universal Processo 470333/2008-1



11 de agosto de 2012

Elogio da Traição (São Luís 400 anos)


O PASSADO DEVE SERVIR PARA ALGUMA COISA

Alexandre Fernandes Corrêa

Os leitores que hoje possuem mais de 40 anos já devem ter ouvido falar da peça de teatro chamada Calabar, escrita por Rui Guerra e Chico Buarque e dirigida por Fernando Peixoto em 1973. Devido a censura da ditadura militar só foi encenada ao público em 1980. A lembrança desse texto teatral, nesse momento de debates e discussões, sobre a fundação francesa ou portuguesa da cidade de São Luís, nos parece oportuna. Os debates sobre o tema das origens míticas ou históricas da capital maranhense têm adquirido sobressaltos um tanto dramáticos; com partidários apaixonados dividindo-se entre duas posições divergentes: de um lado, a defesa glamourosa dos fundadores franceses (francofilia); de outro lado, os mais tímidos defensores dos portugueses (lusofilia). 
O curioso é que nesse drama semelhanças há com a história de Recife e Olinda, estudadas por nós quando pesquisamos em Pernambuco no final dos anos de 1980. Ao realizar um trabalho de pesquisa antropológico nos famosos Montes Guararapes - nos quais se realizaram as memoráveis batalhas pela expulsão dos holandeses - pudemos constatar que ainda há reminiscências profundas do mesmo conflito entre duas versões de fundação e identificação histórico-cultural. Em Pernambuco encontramos também um dilema parecido, tratado no fundo da peça teatral referida acima. Os autores do espetáculo perguntavam a todos: a qual senhor europeu o Brasil deveria servir? O Brasil - projeto de futura luta nativista pela Independência - teria sido melhor colonizado por holandeses do que pelos portugueses?
No ensaio Festim Barroco (Corrêa, [1993] 2008), nós traçamos algumas considerações críticas sobre as versões histórico-culturais desse conflito, considerando suas conversões míticas e simbólicas mais sobressalentes. Creio que podemos então tirar algumas lições desse trabalho, através do exercício da mitanálise, tomando foco agora sobre os nossos atuais estudos dos mitos e dos ritos de fundação da capital ludovicense.
A personagem histórica Domingos Fernandes Calabar foi utilizado por Chico Buarque e Rui Guerra, no início da década de 1970, como agente de crítica ao momento pelo qual passava o nosso país sob o jugo severo do regime ditatorial militar - período em que eram comuns os usos das metáforas nas produções artísticas a fim de, por um lado, burlar a censura rigorosa do sistema e, por outro, denunciar a situação atual. Na peça encontramos distorções históricas importantes, com intuito deliberado de causar espécie de inquietação, com muita força dramática; licenças mais que compreensíveis naquele contexto. Quando aqui forçamos alguma comparação com o que foi tratado nessa obra, é no sentido de provocar uma movimentação no nosso imaginário social sobre a questão em voga. Afinal, realmente há semelhanças que nos suscitam comparações intrigantes. Em Pernambuco, ainda hoje é comum ouvirmos elogios as possibilidades de maior desenvolvimento de Recife e Olinda, caso os holandeses continuassem como senhores, ao invés dos lusitanos ou ibéricos. Invocam-se as ciências e as artes promovidas pelo "grande" Maurício de Nassau; o esclarecimento dos empreendedores batavos e judeus, em harmonia empresarial; e muitas outras vantagens modernistas e capitalísticas que os holandeses teriam sobre os atrasados, semi-feudais e barrocos portugueses ou espanhóis. 
Em São Luís parece-nos que o ‘elogio da traição’ às origens lusitanas e ibéricas graça com força, ao ponto de ser oficializada a sua fundação por franceses. Contudo, em Pernambuco jamais essa traição ganhou apoio institucional; aliás, naquele estado da federação as Forças Armadas celebram as suas origens, fincadas nas batalhas dos Montes Guararapes, em rituais de rememoração teatralizados, com grande pompa e ostentação espetacular; comemorando a expulsão dos invasores holandeses. Todavia, sempre que pensamos nessas celeumas históricas, fantasiando sobre as faustosas vantagens que poderíamos obter caso fossemos colonizados por franceses ou holandeses, lembramos dos nossos países de fronteira ao norte: as Guianas! Parece que nenhum desses três países colonizados por europeus não-ibéricos são exemplos de alto desenvolvimento nos trópicos. Os defensores de “senhores melhores e mais esclarecidos” se esquecem de visitar os índices de desenvolvimento humano (IDH) desses países fronteiriços colonizados, e alguns deles, ainda submetidos, as três metrópoles europeias tão exaltadas pelos anti-ibéricos: Inglaterra, França e Holanda!
Voltando para a peça teatral, no meio do ATO I, no diálogo entre Mathias Albuquerque (ex-governador de Pernambuco) e a personagem que representa o Holandês, diz-se: “No fim das contas o passado deve servir para alguma coisa...” (2006, p. 45). E como tem servido ultimamente! Pode parecer irônico, mas em São Luís ocorre um fenômeno interessante; enquanto em Recife e Olinda (Pernambuco) se expressa sorrateiramente, e as vezes bem queixosamente, a infelicidade de termos caído "de novo" nas mãos ibéricas, no período designado de ‘Restauração’ (que começa com a expulsão dos holandeses em São Luís!); entre os maranhenses, desde 1912, ao se escolher o ‘pai’ fundador, deu-se atestado ao gaulês. No nosso pacto edípico firmado no começo do século XX, as elites hegemônicas entronizaram os francos como os "verdadeiros" fundadores da cidade e da capital do Estado do Maranhão e Grão Pará. A ‘traição’ foi legitimada e, sem resistências contundentes, percorreu o tempo em celebrações cada vez mais espetaculares, culminando com a apoteótica consagração em 1962! Agora, em 2012, prenuncia-se nova espetacular encenação cívica! Dessa vez, ao que parece, com algumas resistências de membros de academias científicas e de universidades públicas, engrossando as falanges dos descontentes com essa ‘traição’ ou “mistificação francófila”: não querem deixar passar para o século XXI tal atentado aos princípios da historiografia e da verdade histórica.
Reler a peça Calabar: o Elogio da Traição, hoje, é um exercício para o espírito que fará muito bem a todos; movimentando nossa musculatura ética e sacudindo nossa mente das poerias e teias de aranha das velhas e costumeiras ideias, repetidas ad nauseam. Trata-se de uma obra inteligente e sutil que coloca em foco; como escreveu Fernando Peixoto: “o comportamento dos homens entre si, observados numa determinada circunstância histórica. Essa postura traz o texto até nossos dias”. 
Sem dúvida, diga-se de passagem, tal objetivo é alcançado com maestria. E vemos até que, no que tange aos entrelaçamentos dos mitos individual e coletivo, comentados em outro artigo nosso, um dos autores da obra traz no nome a marca desse enlaçamento mitológico. O que nos faz relembrar de Mircea Eliade, quando escreveu: “É por isso que o inconsciente apresenta a estrutura de uma mitologia privada. Podemos ir ainda mais longe e afirmar não só que o inconsciente é ‘mitológico’, mas também que alguns dos seus conteúdos estão carregados de valores cósmicos, isto é, que eles refletem as modalidades, os processos e o destino da vida e da matéria viva. Podemos até dizer que o único contato real do homem moderno com a sacralidade cósmica se efetua através do inconsciente, quer se trate dos seus sonhos e da sua vida imaginária, quer das criações que surgem do inconsciente (poesia, jogos, espetáculos, etc.)” (Eliade, 2000, p. 68-69). Citação que cai perfeitamente no caso, tal como uma mão na luva! 
Vimos analisando os mitos, os ritos, as versões históricas e historiográficas, e os discursos de fundação da cidade de São Luís, há alguns anos, e consideramos que nossa contribuição torna-se significativa e útil na medida em que pretende alargar nossos horizontes para além das obviedades e da dimensão anedótica. Nessa trilha analisamos os contornos desses debates e pontuamos aspectos muitas vezes encobertos e negligenciados; afinal, o inconsciente social é dinâmico e não convêm posturas reducionistas no seu trato. O desafio é trazer à tona continentes subterrâneos que subjazem aos enunciados tomados como naturais e óbvios; trabalho que demanda tempo de elaboração e profunda escavação na história cultural.

Referências

BUARQUE, Chico. Calabar: o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
CORRÊA, Alexandre Fernandes. Festim Barroco. São Luís: EUFMA, [1993] 2008.

ELIADE, Mircea. Aspecto do mito. Lisboa: Edições 70. [1963] 2000.

10 de agosto de 2012

MITO, IDEOLOGIA, SONHO E O ENIGMA DOS 400 ANOS


Alexandre Fernandes Corrêa e
Adriana Cajado Costa

Com a aproximação da efeméride dos 400 anos da cidade de São Luís (1612-2012), o que temos a dizer sobre a função simbólica dos mitos? Logo de início podemos dizer que o "mito é uma fala histórica", como adiantou Roland Barthes. No entanto, é nesse momento oportuno que pode se tornar muito fecundo invocar algumas reflexões sobre o trabalho de recuperação do mito na modernidade. 
Podemos partir da premissa que mito tanto remete a uma fala histórico-cultural, como a fala do mundo psíquico individual, pois a estrutura analítica mais pessoal, não nega homologia com os processos de análise sociocultural. De certa forma, podemos dizer que há muita semelhança entre o trabalho da Psicanálise e o da Mitanálise (ou da Culturanálise); enquanto ciências semiológicas operam escavações do tipo arqueológicas do inconsciente social e psíquico, sob regimes de escuta, pontuação, interpretação muito semelhantes. Por isso, afirmamos que é um grave erro a leitura do mito como discurso falso, fabuloso, ou enunciado mentiroso e enganador. Como se verá aqui se trata de uma resistência epistemológica reativa; remetendo-nos ao cientificismo obscurantista e retrógrado ainda preso a Ciência Clássica.
O diálogo entre Logos e Mythos ecoando desde a Antiguidade Clássica já passou por viradas importantes, em diversas revoluções epistêmicas, cristalizando-se no século XX. A crise do cartesianismo e do positivismo vem de longa dada e hoje, felizmente, entramos num novo estágio de conceituação da Mitologia. Contudo, ainda encontramos sobreviventes do velho paradigma fragmentador, resistentes e apegados àquela visão anacrônica do mito como discurso falso e enganador. São recalcitrantes presos ao racionalismo do século XIX, que contagiou muitos espíritos da primeira modernidade, espíritos evolucionistas da envergadura de um Karl Marx, por exemplo. Como se sabe, o jovem Marx chegou a considerar a noção de ideologia de um ponto de vista negativo, tomando-a como ilusão, falsa representação, falsa consciência. Na verdade, os que têm o mito como discurso mentiroso, o identificam com a noção de ideologia; baseado no jargão da Ideologia Alemã (1846). Mas os que se apegam a definição platônica do mito, também se vinculam aos pré-freudianos, aqueles mesmos que ainda consideram o sonho como material psíquico sem importância; um disparate insignificante.
Só depois da obra revolucionária de S. Freud o sonho passou a ser considerado material relevante para a análise psicológica. Assim como só depois da revolução epistemológica realizada no século XX, pelos revisores do próprio marxismo, passou-se a considerar a ideologia de um ponto vista positivo, e não mais negativo. Encontramos em Louis Althusser um dos grandes teóricos dessa virada filosófica e conceitual. Desde então, ideologia deixou de ser definida como sonho e ilusão, para ser considerada um sistema de representações articulando valores e ideias dominantes, em qualquer sociedade. “A ideologia é eterna, como o sonho”, escreveu Althusser. E parafraseando o filósofo francês em destaque, também podemos dizer: o mito é eterno.
E no intuito de solapar de vez as resistências ao estudo positivo do mito, recolhemos algumas citações significativas de alguns mestres da alta modernidade. E começamos com Edgar Morin: “O mito não é uma mentira, pois é verdadeiro para quem vive e é uma forma espontânea do homem situar-se no mundo, elevá-lo a outra esfera, ao transcendente, oferecendo valores  absolutos e paradigmas às atividades humanas, ocupando-se de tudo o que suscita a interrogação, a curiosidade, a necessidade e a aspiração”  (1986, p. 150). Nessa mesma linha de argumentação, lembramos de Mircea Eliade, ao constatar que “o mito é uma realidade cultural complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos” (2000, p. 12). Afinal, é ao mito que cabe preservar a verdadeira história, a história da condição humana; falando de realidades e do modo como elas passaram a existir. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Por outras palavras, “aprende-se não só como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando elas desaparecem” (p. 19).
E avançando na direção da análise individual, Azoubel Neto lembra: “A psicanálise redescobriu o mito, retomou o seu estudo e fê-lo através de um método de trabalho próprio, um método que constitui em si um processo de resgate. Localizou a presença do mito como uma condição real, atuante e atual no inconsciente” (1993, p. 15). E retomando Eliade: "É por isso que o inconsciente apresenta a estrutura de uma mitologia privada. Podemos ir ainda mais longe e afirmar não só que o inconsciente é ‘mitológico’, mas também que alguns dos seus conteúdos estão carregados de valores cósmicos, isto é, que eles refletem as modalidades, os processos e o destino da vida e da matéria viva. Podemos até dizer que o único contato real do homem moderno com a sacralidade cósmica se efetua através do inconsciente, quer se trate dos seus sonhos e da sua vida imaginária, quer das criações que surgem do inconsciente (poesia, jogos, espetáculos, etc.)" (2000, p. 68-69).
Em Jacques Lacan encontramos a reiteração precisa da função do mito, que para ele é a de liberar as pessoas de uma pergunta que nos frenquentemente dizimados: “querendo responder ao que se apresenta como enigma, quer dizer, àquilo que se presume ser sustentado por esse ser ambíguo, que é a esfinge, onde se encarna, falando propriamente, uma dupla disposição por ser feita, tal como o semi-dizer, de dois semi-corpos” (1992, p. 113). O mesmo autor enfatiza este processo do imaginário ao simbólico, ao constituir-se uma organização do imaginário em mito, ou, pelo menos, no caminho de uma construção mítica verdadeira, isto é, coletiva, e nos lembra disso por todos os lados, a ponto mesmo de evocar para nós os sistemas de parentesco (1995, p. 273).
É quando nos aproximamos de Lévi-Strauss (1985), antropólogo das Estruturas Elementares do Parentesco: “A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem em sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem, mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e aonde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento linguístico sobre o qual começou rolando” (p. 242). Enfim: “o mito se desenvolverá como em espiral” (p. 265).
Portanto, considerando todas essas referências mestras, ao acusar o propalado enunciado de fundação francesa de São Luís do Maranhão, um exercício espúrio de mitomania interessada ou alienada, é perpetuar o véu do obscurantismo: afinal, que nome teria essa cidade? Os que tentam resolver de modo simplório o dilema do drama sociocultural subjacente a essa configuração mitológica no campo histórico, apenas encobrem com inconsequente irresponsabilidade algo que submerge nessas falsificações e mistificações pseudo-esclarecedoras. Para nós, subjacente a estas incompreensões e confusões está o debate sobre o reconhecimento das identificações recalcadas e não resolvidas, pois encobertas e disfarçadas neuroticamente. Acusar de mitomania os que se alinham a fraconfilia, é querer falsificar a ciência sob o manto da verdade historiográfica - recurso último da propaganda lusófila -, da qual não se tem garantia alguma de carta fundacional mais legitima ou mais verdadeira. Para solucionar esse enigma é preciso superar os obstáculos que ainda obnubilam a mente dos que se dizem críticos.

Em suma, por tudo que foi aqui recolhido em palavras: mito não é mentira, ideologia não é ilusão e sonho não é um disparate! E, parafraseando o grande poeta portenho Jorge Luis Borges no poema A Fundação Mítica de Buenos Aires, concluímos: só na lenda, começou São Luís!

5 de agosto de 2012

BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL - 2022

Nós brasileiros não somos muito predispostos à antecipações, gostamos do imediatismo e de fazer as coisas em cima da hora. Haja visto os problemas que estamos tendo com a organização da Copa do Mundo e da Olimpíadas. Todavia, trazemos para esse blog, do fundo do palco, para frente da cena, nossas atenções especiais para os rituais celebrativos e comemorativos do Bicentenário de Independência do País, a ser festejado em 2022. Faltam dez anos para a data de 7 de setembro ser recuperada em todo seu fulgor e potência histórica e cultural. Será certamente um momento de exaltação e efusiva manifestação patriótica e nacionalista; especialmente por parte das agências oficiais. Porém, sabemos que não se restringirá a isso; nem deve. Os críticos vão se manifestar, os céticos, os anti-nacionalistas e toda uma plêiade de intelectuais, autoridades, pesquisadores, estudantes etc., vão expressar as diversas e diferentes versões da efeméride: prato cheio para os historiadores; mas, nem só deles. De nossa parte, vamos acompanhar a evolução dos acontecimentos e recolher tudo que for interessante, a respeito dessa celebração. A partir desse anos, depois de concluirmos nossas observações sobre o IV Centenário de São Luís, vamos nos dedicar aos estudos e pesquisas sobre o Bicentenário de Independência do Brasil.

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LITURGIAS POLÍTICAS

O foco de nossa análise recai sobre os ritos comemorativos na sociedade moderna, mais especialmente os que ocorrem mais recentemente no contexto periférico do sistema-mundo. Trata-se de uma socioanálise crítica de aspectos estruturais próprios da construção social das comemorações históricas, tomando como objeto empírico principal o IV centenário de "fundação" do Centro Antigo de São Luís/MA, em 2012. Destacaremos alguns dispositivos significativos dos processos rituais locais, típicos em sociedades situadas na periferia da economia-mundo, que nos parecem estruturados em modelos sociológicos concorrentes. Ao analisar esses teatros comemorativos das festas públicas, buscamos compreender a lógica de sua permanência e mudança, em seus traços socioculturais mais particulares. É a dialética da permanência e da mudança que nos tem chamado a atenção desde o nosso primeiro estudo sobre festa popular católica, nos Montes Guararapes de Pernambuco, no início dos anos de 1990. Nosso interesse no tema já avançou para observação de outras festividades públicas importantes no vasto calendário contemporâneo de ritos comemorativos públicos e oficiais. Desde a inauguração das festas republicanas atlânticas nos países centrais, como as comemorações dos 200 anos da Independência dos EUA (1976) e da Revolução Francesa (1989), aos 500 anos da Descoberta da América (1992), até as realizadas em países semiperiféricos como o Brasil (2000), temos muitas festividades cívicas completando um rico leque de agendas internacionais. Nosso estudo recaiu mais recentemente para as festas republicanas e de independência na América Latina, desde a revolução haitiana, em 1792, até culminar com o foco direto sobre o processo de construção sociocultural das próximas festividades comemorativas do Bicentenário da Independência do Brasil, em 2022. 

1 de agosto de 2012

Descoberta e invenção do Brasil - São Luís 400 anos


No momento em que nos aproximamos do 08 de setembro de 2012, data em que comemoramos os 400 anos de "fundação" da cidade de São Luís do Maranhão, convém lembrar de um texto interessante de Roberto da Matta, publicado por ocasião da proximidade das comemorações dos 500 anos de "descobrimento" do Brasil, no ano 2000.

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Descoberta e Invenção do Brasil

Roberto da Matta (*)

Neste mês de abril, mais precisamente no próximo dia 22, vamos comemorar os 500 anos do "descobrimento" do Brasil.

Ninguém definiu melhor esse episódio do que Lamartine Babo, quando, rimou Brasil, Cabral e Carnaval, definindo uma equação que nenhum estudioso havia notado: o Brasil foi inventado por "seu" Cabral, no dia 22 de abril, dois meses depois do Carnaval!

Enquanto os intelectuais pátrios discutiam os males da mestiçagem, Lamartine Babo singelamente conectava Brasil e Carnaval. Para ele, a palavra-chave para entender a "história do Brasil" não estaria no verbo "ser" (o Brasil é isso ou aquilo, é assim ou assado), mas num processo de construção coletivo: no Carnaval que inventa nossa identidade sendo, por sua vez, reinventado por nós.

Falo destas coisas porque observo com pesar que as comemorações do descobrimento estão cercadas de melancolia. A nossa incrível capacidade de confundir crítica com flagelação tem usado essa oportunidade para realizar uma espécie de antidescobrimento do Brasil. Ou seja: no justo momento de comemorar o aniversário do País, usa-se o evento para descobrir os índios que, além de donos da terra, tinham também sua visão particular dos portugueses. Isto posto, quem "descobriu" quem?

Nada tenho contra essa tese. Mas vale estimar que a comemoração da "descoberta do Brasil" não é proposta como uma verdade indiscutível. É, entretanto, um ritual derivado de um "mito fundacional". Uma história que - como todo conto - tem uma perspectiva e um ponto de vista. No caso, como não poderia deixar de ser, um inegável viés luso-brasileiro.

Todos os países tem "mitos fundacionais". Os americanos falam de uma nação feita por "pais fundadores", os representantes das 13 "colônias originais" que, congregados em federação, escreveram o documento fundador dos Estados Unidos, a sua Constituição. Os mexicanos falam de uma "conquista", salientando um traço marcante de sua colonização pelos espanhóis imbuídos de missão civilizatória. Em ambos os casos, esqueceram-se os índios e os negros, ambos dotados de visões particulares desses mesmos eventos.

Com quem ficar? Como encontrar a trilha nesta floresta de mitos e clamores civilizatórios, se não há bússolas ou juízes da história e das mitologias?

Só há um caminho. O que reconhece a "descoberta do Brasil" como um evento inclusivo. Não há razão para esquecer que toda descoberta implica em mutualidade e reciprocidade. É triste, e ao mesmo tempo revelador, que nenhum dos vários comitês destinados a organizar e honrar esse evento original de nossa história tenha enfatizado e apresentado esse argumento definitivo: o fato de que nas três Americas, somente o Brasil tenha um mito de "descoberta" (que inclui tanto a terra quanto os nativos), quando todos os outros mitos fundacionais "americanos" sejam constituídos por narrativas baseadas na exclusão e na dominação dos nativos e da natureza.

Além disso, é preciso também ter a coragem para admitir que toda sociedade tem o direito de comemorar seus mitos. Sobretudo quando esses mitos não clamam superioridade racial ou promovem o ódio étnico. Se todas as tradições contêm sua quota de arbitrariedade, porque não aceitar as que fazem parte da nossa mitologia fundacional? Uma mitologia, reitero, singularmente baseada na inclusão e na mutualidade. Na idéia de descoberta que permite dialogar e descobrir o ponto de vista do outro. Se os grupos radicais têm todo o direito de desmistificar o mito cabralino da descoberta do Brasil, nós, brasileiros, temos iguamente o direito de acreditar e honrar esse mito que, afinal de contas, dá origem a nossa história como coletividade.

Aceitos esses argumentos, por que então não deflagrar um debate coletivo pondo em foco a idéia de "descoberta", de "descobrimento" e de "descobrir", atando os que aqui chegaram com os que aqui residiam, uns e outros surpresos pela visão e pelo inusitado encontro com uma outra humanidade?

Seria ótimo, se não fosse, como sempre, um tanto tarde para se descobrir o óbvio.

É incrível nossa capacidade de confundir crítica com flagelação.

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(*) Jornal da tarde de 16/04/2000 

16 de maio de 2012

Desobedeça, Transgrida, Reinvente!


Essa é a nova campanha publicitária da SCAMBOO Calçados!

Incrível observarmos esses cartazes e estampas fotográficas espalhadas em diversas cidades do país, conclamando a todos a sacudir a mesmice, a banalidade, o conformismo e a acomodação costumeira!

É por que a coisa está morna mesmo, muito conservadorismo, lugar comum e repetição!

A neurose social contemporânea possui está característica pós-moderna: população de zumbis que precisam de ser conclamados à transgressão, pela própria estrutura ideológica que impõe as séries de reproduções do mesmo, disfarçada na imagem da "diferença"...  

12 de maio de 2012

Amazônia - Patrimônio Ambiental e Cultural, para quem?‏


Prezados,

A notícia em relação ao "tombamento" do Encontro das Águas dos Rios Solimões e Negro no Estado do Amazonas me lembrou, em alguns momentos, aquela famosa manifestação de Cristovan Buarque em resposta a um estudante norte-americano sobre a preservação da Amazônia; que todos conhecem, pois circulou na internet, sendo considerado um dos documentos mais lidos na rede.

Vamos "Tombar a Amazônia" para quem?

Trata-se da recente "LIMINAR do STF que IMPEDE OBRAS NA REGIÃO DO ENCONTRO DOS RIOS NEGRO E SOLIMÕES"...

O STF através da decisão do ministro Dias Toffoli determinou a suspensão da ação de anulação ajuizada pelo Estado do Amazonas, por entender que ficou configurado conflito entre o ente federativo e a União, caso em que o julgamento é de competência do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o artigo 102, I, "f", da Constituição Federal

Não tenho competência jurídica para debater os aspectos técnicos da decisão, mas como possuo estudos livres sobre política do patrimônio cultural e ambiental, gostaria de colocar algumas apreensões quanto a esses processos de "tombamento" em curso.

O IPHAN está com o processo em andamento e o Estado do Amazonas entrou com uma ação na Justiça Federal do Amazonas, e conseguiu  suspender o processo de acautelamento. O STF, por questões de competência jurídica, suspendeu a decisão da Justiça Federal do Amazonas.

Qual é o problema aí? O que pode interessar um sociólogo, um processo desse? Ora, muito! Pois, o "tombamento" pode significar a tentativa de "congelar" a história o uso da "paisagem cultural e natural" do Estado pela sua população!

O IPHAN desse modo vai interfirir no processo de decisão quanto ao uso da "paisagem" para a história do Estado do Amazonas! Para (stop) a História: congela, patrimonializa, petrifica... Como fica a sociedade local? Ela participa desse processo?

O Estado do Amazonas, como ente federativo, através de seus representantes legais contestam tal "tombamento". Parece que o problema técnico está no foro em que foi encaminhado a ação de suspensão. Mas, fica a questão: não seria correto fazer um PLEBISCITO para decidir algo dessa monta? Os conselheiros do IPHAN é que devem ter o poder de decidir algo desse porte? A União, através do IPHAN, vai decidir o futuro ambiental e cultural do Estado do Amazonas?
Quem são os conselheiros do IPHAN: os colegas sabem seus nomes? Quem os indicou? Representam o quê, e quem? A população brasileira sabe o nome desses conselheiros?
Esse tipo de situação política e cultural, e ambiental, mereceria um debate mais aberto, democrático; no mínimo...
Não pode ser uma decisão tecnocrática e nem palaciana, deve ser aberta...

Vamos "Preservar a Amazônia" em que termos? Qual o projeto em causa?

"Tombar a Amazônia" é a solução? PLEBISCITO JÁ!

Bem, vou ficando por aqui... com essas reflexões heterodoxas! 

Um abraço!  

Alexandre F. Corrêa
CRISOL - Pesquisas e Estudos Culturais
www.crisol-gpec.com.br

PS - Será necessário ser-se odioso para se furtar ao contágio do consensual?
A Sociedade Transbordante.
Henri-Pierre Jeudy.