O PASSADO DEVE SERVIR
PARA ALGUMA COISA
Alexandre Fernandes
Corrêa
Os leitores que
hoje possuem mais de 40 anos já devem ter ouvido falar da peça de teatro
chamada Calabar, escrita por Rui Guerra e Chico Buarque e
dirigida por Fernando Peixoto em 1973. Devido a censura da ditadura militar só
foi encenada ao público em 1980.
A lembrança desse texto teatral, nesse momento de
debates e discussões, sobre a fundação francesa ou portuguesa da cidade de São
Luís, nos parece oportuna. Os debates sobre o tema das origens míticas ou
históricas da capital maranhense têm adquirido sobressaltos um tanto
dramáticos; com partidários apaixonados dividindo-se entre duas posições
divergentes: de um lado, a defesa glamourosa dos fundadores franceses
(francofilia); de outro lado, os mais tímidos defensores dos portugueses
(lusofilia).
O
curioso é que nesse drama semelhanças há com a história de Recife e Olinda,
estudadas por nós quando pesquisamos em Pernambuco no final dos anos de 1980.
Ao realizar um trabalho de pesquisa antropológico nos famosos Montes Guararapes
- nos quais se realizaram as memoráveis batalhas pela expulsão dos holandeses -
pudemos constatar que ainda há reminiscências profundas do mesmo conflito entre
duas versões de fundação e identificação histórico-cultural. Em Pernambuco
encontramos também um dilema parecido, tratado no fundo da peça teatral
referida acima. Os autores do espetáculo perguntavam a todos: a qual senhor
europeu o Brasil deveria servir? O Brasil - projeto de futura luta nativista
pela Independência - teria sido melhor colonizado por holandeses do que pelos portugueses?
No
ensaio Festim Barroco (Corrêa, [1993] 2008), nós traçamos
algumas considerações críticas sobre as versões histórico-culturais desse
conflito, considerando suas conversões míticas e simbólicas mais
sobressalentes. Creio que podemos então tirar algumas lições desse trabalho,
através do exercício da mitanálise, tomando foco agora sobre os nossos atuais
estudos dos mitos e dos ritos de fundação da capital ludovicense.
A
personagem histórica Domingos Fernandes Calabar foi utilizado por Chico Buarque
e Rui Guerra, no início da década de 1970, como agente de crítica ao momento
pelo qual passava o nosso país sob o jugo severo do regime ditatorial militar -
período em que eram comuns os usos das metáforas nas produções artísticas a fim
de, por um lado, burlar a censura rigorosa do sistema e, por outro, denunciar a
situação atual. Na peça encontramos distorções históricas importantes, com
intuito deliberado de causar espécie de inquietação, com muita força dramática;
licenças mais que compreensíveis naquele contexto. Quando aqui forçamos alguma
comparação com o que foi tratado nessa obra, é no sentido de provocar uma
movimentação no nosso imaginário social sobre a questão em voga. Afinal ,
realmente há semelhanças que nos suscitam comparações intrigantes. Em
Pernambuco, ainda hoje é comum ouvirmos elogios as possibilidades de maior
desenvolvimento de Recife e Olinda, caso os holandeses continuassem como
senhores, ao invés dos lusitanos ou ibéricos. Invocam-se as ciências e as artes
promovidas pelo "grande" Maurício de Nassau; o esclarecimento dos
empreendedores batavos e judeus, em harmonia empresarial; e muitas outras
vantagens modernistas e capitalísticas que os holandeses teriam sobre os
atrasados, semi-feudais e barrocos portugueses ou espanhóis.
Voltando
para a peça teatral, no meio do ATO I, no diálogo entre Mathias Albuquerque
(ex-governador de Pernambuco) e a personagem que representa o Holandês, diz-se:
“No fim das contas o passado deve servir para alguma coisa...” (2006, p. 45). E
como tem servido ultimamente! Pode parecer irônico, mas em São Luís ocorre um
fenômeno interessante; enquanto em Recife e Olinda (Pernambuco) se expressa
sorrateiramente, e as vezes bem queixosamente, a infelicidade de termos caído
"de novo" nas mãos ibéricas, no período designado de ‘Restauração’
(que começa com a expulsão dos holandeses em São Luís !); entre os
maranhenses, desde 1912, ao se escolher o ‘pai’ fundador, deu-se atestado ao
gaulês. No nosso pacto edípico firmado no começo do século XX, as elites
hegemônicas entronizaram os francos como os "verdadeiros" fundadores
da cidade e da capital do Estado do Maranhão e Grão Pará. A ‘traição’ foi legitimada
e, sem resistências contundentes, percorreu o tempo em celebrações cada vez
mais espetaculares, culminando com a apoteótica consagração em 1962! Agora, em
2012, prenuncia-se nova espetacular encenação cívica! Dessa vez, ao que parece,
com algumas resistências de membros de academias científicas e de universidades
públicas, engrossando as falanges dos descontentes com essa ‘traição’ ou
“mistificação francófila”: não querem deixar passar para o século XXI tal
atentado aos princípios da historiografia e da verdade histórica.
Reler
a peça Calabar: o Elogio da
Traição, hoje, é um exercício para o espírito que fará muito bem a todos;
movimentando nossa musculatura ética e sacudindo nossa mente das poerias e
teias de aranha das velhas e costumeiras ideias, repetidas ad nauseam. Trata-se de uma
obra inteligente e sutil que coloca em foco; como escreveu Fernando Peixoto: “o
comportamento dos homens entre si, observados numa determinada circunstância
histórica. Essa postura traz o texto até nossos dias”.
Sem
dúvida, diga-se de passagem, tal objetivo é alcançado com maestria. E vemos até
que, no que tange aos entrelaçamentos dos mitos individual e coletivo,
comentados em outro artigo nosso, um dos autores da obra traz no nome a marca
desse enlaçamento mitológico. O que nos faz relembrar de Mircea Eliade, quando
escreveu: “É por isso que o inconsciente apresenta a estrutura de uma mitologia
privada. Podemos ir ainda mais longe e afirmar não só que o inconsciente é
‘mitológico’, mas também que alguns dos seus conteúdos estão carregados de
valores cósmicos, isto é, que eles refletem as modalidades, os processos e o
destino da vida e da matéria viva. Podemos até dizer que o único contato real
do homem moderno com a sacralidade cósmica se efetua através do inconsciente,
quer se trate dos seus sonhos e da sua vida imaginária, quer das criações que
surgem do inconsciente (poesia, jogos, espetáculos, etc.)” (Eliade, 2000, p.
68-69). Citação que cai perfeitamente no caso, tal como uma mão na luva!
Vimos
analisando os mitos, os ritos, as versões históricas e historiográficas, e os
discursos de fundação da cidade de São Luís, há alguns anos, e consideramos que
nossa contribuição torna-se significativa e útil na medida em que pretende
alargar nossos horizontes para além das obviedades e da dimensão anedótica.
Nessa trilha analisamos os contornos desses debates e pontuamos aspectos muitas
vezes encobertos e negligenciados; afinal, o inconsciente social é dinâmico e
não convêm posturas reducionistas no seu trato. O desafio é trazer à tona
continentes subterrâneos que subjazem aos enunciados tomados como naturais e
óbvios; trabalho que demanda tempo de elaboração e profunda escavação na
história cultural.
Referências
BUARQUE,
Chico. Calabar: o elogio da traição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
CORRÊA,
Alexandre Fernandes. Festim Barroco. São Luís: EUFMA, [1993] 2008.
ELIADE,
Mircea. Aspecto do mito. Lisboa: Edições 70. [1963] 2000.