Edital MCT/CNPQ 14/2008 Universal Processo 470333/2008-1



14 de fevereiro de 2012

Festa e Guerra em Tempos de Carnaval

Tomatina: Festa da Guerra do Tomate (Espanha)
Aspectos socioculturais merecem ser destacados dos acontecimentos lamentáveis registrados no último final de semana em São Luís/MA. Trata-se do verdadeiro campo de guerra que se instalou, momentos antes de um grupo musical da Bahia, chamado Psirico, apresentar-se no palco principal da Festa Pública organizada pelo Governo do Estado do Maranhão, designada de CARNAVAL DOS 400 ANOS!

Trata-se de uma festa contratada com dinheiro público, agenciando artistas locais e de outros estados da federação, para embalar num rito pr-e-carnavalesco, a multidão sempre ávida por diversão, entretenimento e lazer. Principalmente os jovens, em pleno vigor de suas energias vitais.

Mas, o que um sociólogo dos processos culturais pode dizer sobre os fatos ocorridos? Afinal, trata-se apenas de constatar uma total desorganização e despreparo do poder público instituído, em promover e garantir a segurança pública! Além de uma aberração em termos de política cultural para uma cidade e um estado! Certaamente, é mais um caso para investigação, responsabilizações e punições; sem dúvida!
Todavia, nosso interesse no tema vai além de constatar o óbvio; vai além de sublinhar a incompetência dos aparelhos de segurança e da cultura do Estado; abandonado a sorte e ao destino!

Nesse momento, gostaríamos de ressaltar um fenômeno que extrapola a realidade local e atinge o horizonte do processo civilizatório.

Ao assistir a gravação feita por um popular, através de vídeo amador - possívelmente por aparelho celular, e disponível no YouTube no endereço: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=OjnmZo1f0Vc - nos deparamos com uma realidade que nos faz remontar a algumas reflexões sociológicas apresentadas antes da II Grande Guerra Mundial, mas que ganhou destaque nos décadas de 1950 e 60, do século passado. Trata-se mais particularmente da obra O Homem e o Sagrado (1939), de Roger Caillois. Nesse livro o sociólogo francês da Escola de Sociologia fundada por Émile Durkheim, defende, em poucas e ligeiras palavras, a teoria de que as festas, com o desenvolvimento da urbanização e da industrialização, tendem a desaparecer da paisagem civilizada, dando lugar, não ao fenômeno das férias ou do lazer; mas, a guerra! Sua teoria é que as sociedades modernas ao empobrecerem a expressão da efervescência coletiva das festas, dão lugar para o desenvolvimento do fenômeno da guerra: destruição programada, sacríficio, desperdício, desgaste, que só se comparam com a força e virulência das antigas festas e festivais arcaicos.
Em 1949, nesse mesmo livro, Caillois chegou a fazer uma observação interessante, sobre o Carnaval do Rio de Janeiro:

"Na América Latina, em especial nos carnavais do Rio de Janeiro e de Vera Cruz, onde durante uma semana prolongada toda a população de uma sociedade e dos arredores se mistura, canta e dança, se agita e faz barulho numa efervescência quase ininterrupta, pude verificar que a minha descrição da festa, ao contrário de ser quimérica, correspondia no essencial a realidades ainda vivazes e observáveis, embora visivelmente em decadência por causa das necessidades da vida urbana contemporânea." (p.10).

Podemos avançar nas considerações que estas palavras implicam, arriscando uma certa Antropologia Experimental, ou crítica cultural, tentando avaliar os alcances dessas análises; hoje, em pleno início do século XXI.

Primeiro, constatamos que a festa brasileira não está decadente!
Pode-se dizer que passou por transformações e metamorfoses, tanto profundas e como superficiais; contudo, não desapareceu! E mais, ao espetacularizar-se ganhou em profusão, alarido, rítmo, colorido e expressão! A despeito de ter-se turistificado, tornando-se mercadoria midiática, ainda resiste em alguns rincões, mesmo metropolitanos, com características consideradas "arcaicas", nas palavras do sociólogo observador de 1949. É certo que não se trata das mesmas festas; nem primitivas, nem modernas!
No entanto, o que podemos encontrar de sutil nessa teoria de Caillois?
Vestígios de um evolucionismo durkheimiano que aproveita do funcionalismo algumas ferramentais conceituais, por exemplo, a hipótese da válvula de escape; mas que não resiste as nossas observações contemporâneas. A festa continua forte, viva e poderosa; necessária, ritual, marcante!

A teoria falhou? Vejamos!

O sociólogo postula a seguinte equação, dividida em axiomas: a) A Festa é sobrevivência do mundo primitivo; b) A Modernidade empobrece a Festa; c) A Guerra ocupa o lugar da Festa na sociedade moderna.
O que podemos concluir desses postulados? A sociedade brasileira ainda não concluiu o ciclo de desenvolvimento urbano e industrial necessário para a confirmação dessa teoria? Ou a teoria peca por não relativizar o contexto cultural, religioso e moral peculiar a cada sociedade?
A nosso ver, parece que no Brasil, e na América Latina, encontramos um tipo sociológico não previsto pelo sociólogo francês. Há uma síntese, um sincretismo histórico-cultural curioso, em que a festa mantém viva e vibrante, apesar do desenvolvimento das forças produtivas. É uma festa organizada, racionalidada, menos espontanea; mas, mantém-se constante. Como explicar isso?
Por mais que os nostálgicos digam que os Carnavais de antigamente eram melhores, mais autênticos, mais verdadeiros, etc., é evidente que a festa é um traço que mantém-se recorrente e significativo em nossas sociedades latinas.
O Brasil não faz a guerra - não difunde e não desenvolve a máquina beligerante - faz a festa!
Até onde podemos avançar com essa sentença? É assim que se dá? O povo brasileiro é pacífico, ordeiro, festeiro, alegre? É assim que podemos perceber essa nação, e sua "identidade cultural"?
Então, como explicar a violência que explode em diversos locais, cidades, regiões e estados desse país? Em pleno período pré-carnavalesco! Em que a teoria social pode nos ajudar a entender esse fenômeno aparentemente contraditório e paradoxal?Jean Duvignaud, na obra Festas e Civilizações, publicada entre nós nos idos de 1983, escreveu:

"O Brasil - assim como a América Latina - (...) oferece a imagem ou a ilusão daquilo que poderia ter sido uma civilização que houvesse acolhido outra opção, diversa da rentabilidade e do capital. O ingresso na economia de mercado era inevitável? Por acaso, é inconcebível a existência de uma sociedade que pratique a redistribuição da riqueza, orientando-se para a procura do desenvolvimento de homens e mulheres, ao invés do esforço  no  sentido  de  uma organização sistemática  com  vistas a eleger o trabalho como a única finalidade social dos seus membros? Quatro séculos mais tarde, a pergunta ainda não parece haver sido formulada (...)" (Duvignaud; 1983, p. 24).

Duvignaud sugere nessa obra, que nós sigamos em busca de uma nova epistemologia que nos dê condições de superar os impasses da teoria sociológica clássica; como vimos em Roger Caillois. E nesse caminho assevera:

"É possível que a Europa não mais disponha de condições para a realização de um esforço desta natureza, embora aqui e ali despontem tentativas para decifrar o que antes parecia incompreensível. O Brasil, sem dúvida é um dos continentes onde a auto-análise - a auto-antropologia, a auto-sociologia -  podem demolir a epistemologia dominante. Mas, para isso, é claro, deve colocar entre parênteses as ideologias ou as doutrinas e 'descer à profundidade das próprias coisas'...
A festa não é, em verdade, o exercício irracional com que a queriam rotular apenas porque não correspondia às categorias menstais de um mundo paralisado pela ideia da funcionalidade ou da rentabilidade. Afinal de contas, conforme dizia Hegal, se a realidade é irracional, muito bem, devemos nesse caso inventar uma conceituação irracional..." (p. 25).
 
O que ocorreu na Avenida Litorânea da cidade de São Luís/MA e que pode ser vista no vídeo indicado acima, refelte que realidade sócio-cultura e histórica. Trata-se apensa de uma desordem nos dispositivos de controle institucional da festa programada e racionalidada? Houve uma disfunção do sistema de controle que gerou, por incopetência e falta de gerenciamento, uma explosão irracional de violência localizada e esporádica? Ou encontramos aí com um tipo sociológico sui generis em que a festa e a guerra se associam num novo fenômeno coletivo, ainda indecifrável, não codificado?

Observem que a pessoa que filmou e divulgou o vídeo na Internet, por diversas vezes no decorrer das cenas, gravadas sem edição, em 6 minutos de sequência, repete diversas vezes: - É Guerra na Litorânea! É Guerra! E o próprio título do vídeo foi divulgado nesses termos: "GUERRA NA LITORANEA, SAO LUIS-MA"! Da festa para a guerra! No mesmo espaço, no mesmo ritual, no mesmo evento! Não é uma coisa (social) ou outra; sào as duas coisas (sociais) num mesmo processo e devir!
Qual o nosso conceito de festa? Qual o nosso conceito de guerra
Quantos fenômenos sociais atualmente podemos classificar como ao mesmo tempo festa-guerra? Não são poucos!


Talvez estejamos diante de um desafio sociológico e antropológico que merece nossa atenção!
É preciso avançar na teoria social da festa e da guerra!

* * *

Essa reflexão está sendo incorporada no texto:


PARA UMA ANTROPOLOGIA DAS COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS:
o caso do IV Centenário de São Luís/MA.



Trabalho a ser apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.

28ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA (RBA)
“Desafios Antropológicos Contemporâneos”
02 a 05 de Julho de 2012 - PUC-SP

GT 39 Festa, Estrutura, Mudança
Coordenadores: Léa Freitas Perez (UFMG) e Roberto Motta (UEPB).

GT 39 Festa, Estrutura, Mudança / Léa Freitas Perez (UFMG) – Coordenador e Roberto Motta (UEPB) – Coordenador.

A exuberância festiva onde os movimentos dos participantes “não podem ser explicados por nenhuma finalidade precisa nem por objetivos estritamente definidos, pois as pessoas pulam, dançam, choram e cantam, sem que seja possível perceber o sentido dessa agitação” (Durkheim), bem como o êxtase do transe, são fenômenos que parecem ultrapassar toda estruturação lógica e toda expressão conceptual, correspondendo à experiências nas quais determinações da natureza e da cultura são superadas e sobrepujadas. Entretanto, só adquirem pleno sentido quando articulados em estruturas coerentes e só se tornam compreensíveis quando traduzidos na ordem dos conceitos. São fenômenos socioculturais que, embora já abordados por estudiosos como Durkheim, Robertson-Smith, Turner, DaMatta, Caillois, Leiris, Bataille, e, ao menos tangencialmente, Mauss e Lévi-Strauss, permanecem como desafio, convidando-nos a deslindar e a compreender a mistura de estrutura e anti-estrutura aí presentes. Ainda mais crucial num país como o Brasil, onde festa e transe são realidades corriqueiras e cujo próprio modo de ser nasce em grande parte do entusiasmo da festa barroca, que se prolonga até os dias de hoje, em diferentes formas de manifestação. O GT quer tratar da festa e/ou dos fenômenos ligados à antiestrutura e ao excesso enquanto ligados à gênese e à transformação das culturas e de seus agentes.

Título:
PARA UMA ANTROPOLOGIA DAS COMEMORAÇÕES HISTÓRICAS: o caso do IV Centenário de São Luís/MA.
Autor: Alexandre F. Corrêa (PGCult/UFMA)
  
Comunicação com incursão nos clássicos da Antropologia da Festa e reflexões concernentes a Sociologia dos ritos comemorativos na sociedade moderna. Análise crítica de aspectos estruturais na construção social das comemorações históricas, tomando como objeto empírico o IV centenário de São Luís em 2012. Destacamos dispositivos significativos dos processos rituais locais, estruturados em esquemas sociológicos concorrentes. Ao analisar esses teatros comemorativos das festas públicas, buscamos compreender a lógica de sua permanência e mudanças em traços socioculturais particulares. Recorremos às festas de 1912 e 1962, servindo de base sociológica comparativa, pretendo alcançar as dominantes culturais dessas máquinas comemorativas. Observamos um conflito histórico-político de fundo, manifesto nos embates sobre a ‘fundação’ mítica da cidade: francófilos x lusófonos. Contornando o debate historiográfico – em que surgem acusações de mitomania e falsificação ideológica – elaboramos a hipótese do confronto entre dois esquemas celebrativos concorrentes: a) comemorativo; b) festivo. Com o enfraquecimento do primeiro observa-se o segundo preponderar, perpetuando o dispositivo barroco consagrado. Este atravessa a história desde a Colônia, atualizando o pacto festivo do 'Triunfo Eucarístico' de 1733, em Vila Rica, incorporando requintes do espetáculo midiático carnavalizado: teatro barroco mágico para as massas pós-modernas.



Nenhum comentário: