Alexandre
Fernandes Corrêa e
Adriana Cajado
Costa
Com a aproximação
da efeméride dos 400 anos da cidade de São Luís (1612-2012), o que temos a
dizer sobre a função simbólica dos mitos? Logo de início podemos dizer que o
"mito é uma fala histórica", como adiantou Roland Barthes. No
entanto, é nesse momento oportuno que pode se tornar muito fecundo invocar
algumas reflexões sobre o trabalho de recuperação do mito na modernidade.
Podemos
partir da premissa que mito tanto remete a uma fala histórico-cultural, como a
fala do mundo psíquico individual, pois a estrutura analítica mais pessoal, não
nega homologia com os processos de análise sociocultural. De certa forma,
podemos dizer que há muita semelhança entre o trabalho da Psicanálise e o da
Mitanálise (ou da Culturanálise); enquanto ciências semiológicas operam
escavações do tipo arqueológicas do inconsciente social e psíquico, sob regimes
de escuta, pontuação, interpretação muito semelhantes. Por isso, afirmamos que
é um grave erro a leitura do mito como discurso falso, fabuloso, ou enunciado
mentiroso e enganador. Como se verá aqui se trata de uma resistência
epistemológica reativa; remetendo-nos ao cientificismo obscurantista e retrógrado
ainda preso a Ciência Clássica.
O
diálogo entre Logos e Mythos ecoando desde a Antiguidade Clássica
já passou por viradas importantes, em diversas revoluções epistêmicas,
cristalizando-se no século XX. A crise do cartesianismo e do positivismo vem de
longa dada e hoje, felizmente, entramos num novo estágio de conceituação da
Mitologia. Contudo, ainda encontramos sobreviventes do velho paradigma
fragmentador, resistentes e apegados àquela visão anacrônica do mito como
discurso falso e enganador. São recalcitrantes presos ao racionalismo do século
XIX, que contagiou muitos espíritos da primeira modernidade, espíritos
evolucionistas da envergadura de um Karl Marx, por exemplo. Como se sabe, o
jovem Marx chegou a considerar a noção de ideologia de um ponto de vista
negativo, tomando-a como ilusão, falsa representação, falsa
consciência. Na verdade, os que têm o mito como discurso mentiroso, o
identificam com a noção de ideologia; baseado no jargão da Ideologia
Alemã (1846). Mas os que se
apegam a definição platônica do mito, também se vinculam aos pré-freudianos,
aqueles mesmos que ainda consideram o sonho como material psíquico sem
importância; um disparate insignificante.
Só
depois da obra revolucionária de S. Freud o sonho passou a ser considerado
material relevante para a análise psicológica. Assim como só depois da
revolução epistemológica realizada no século XX, pelos revisores do próprio
marxismo, passou-se a considerar a ideologia de um ponto vista positivo, e não
mais negativo. Encontramos em Louis Althusser um dos grandes teóricos dessa
virada filosófica e conceitual. Desde então, ideologia deixou de ser definida como sonho e
ilusão, para ser considerada um sistema de representações articulando valores e
ideias dominantes, em qualquer sociedade. “A ideologia é eterna, como o sonho”,
escreveu Althusser. E parafraseando o filósofo francês em destaque, também
podemos dizer: o mito é eterno.
E
no intuito de solapar de vez as resistências ao estudo positivo do mito, recolhemos
algumas citações significativas de alguns mestres da alta modernidade. E
começamos com Edgar Morin: “O mito não é uma mentira, pois é verdadeiro para
quem vive e é uma forma espontânea do homem situar-se no mundo, elevá-lo a
outra esfera, ao transcendente, oferecendo valores absolutos e paradigmas
às atividades humanas, ocupando-se de tudo o que suscita a interrogação, a
curiosidade, a necessidade e a aspiração” (1986, p. 150). Nessa mesma
linha de argumentação, lembramos de Mircea Eliade, ao constatar que “o
mito é uma realidade cultural complexa, que pode ser abordada e
interpretada em perspectivas múltiplas e complementares... Conta uma
história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos começos”
(2000, p. 12). Afinal, é ao mito que cabe preservar a verdadeira história,
a história da condição humana; falando de realidades e do modo como elas
passaram a existir. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das
coisas. Por outras palavras, “aprende-se não só como as coisas passaram a
existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando elas
desaparecem” (p. 19).
E
avançando na direção da análise individual, Azoubel Neto lembra: “A psicanálise
redescobriu o mito, retomou o seu estudo e fê-lo através de um método de
trabalho próprio, um método que constitui em si um processo de resgate.
Localizou a presença do mito como uma condição real, atuante e atual no
inconsciente” (1993, p. 15). E retomando Eliade: "É por isso que o
inconsciente apresenta a estrutura de uma mitologia privada. Podemos ir ainda
mais longe e afirmar não só que o inconsciente é ‘mitológico’, mas também que
alguns dos seus conteúdos estão carregados de valores cósmicos, isto é,
que eles refletem as modalidades, os processos e o destino da vida e da
matéria viva. Podemos até dizer que o único contato real do homem moderno
com a sacralidade cósmica se efetua através do inconsciente, quer se trate
dos seus sonhos e da sua vida imaginária, quer das criações que surgem do
inconsciente (poesia, jogos, espetáculos, etc.)" (2000, p. 68-69).
É
quando nos aproximamos de Lévi-Strauss (1985), antropólogo das Estruturas Elementares do
Parentesco: “A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no
modo de narração, nem em sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é
linguagem, mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e aonde o
sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento linguístico sobre
o qual começou rolando” (p. 242). Enfim: “o mito se desenvolverá como em
espiral” (p. 265).
Portanto,
considerando todas essas referências mestras, ao acusar o propalado enunciado
de fundação francesa de São Luís do Maranhão, um exercício espúrio de mitomania
interessada ou alienada, é perpetuar o véu do obscurantismo: afinal, que nome
teria essa cidade? Os que tentam resolver de modo simplório o dilema do drama
sociocultural subjacente a essa configuração mitológica no campo histórico,
apenas encobrem com inconsequente irresponsabilidade algo que submerge nessas
falsificações e mistificações pseudo-esclarecedoras. Para nós, subjacente a
estas incompreensões e confusões está o debate sobre o reconhecimento das
identificações recalcadas e não resolvidas, pois encobertas e disfarçadas neuroticamente.
Acusar de mitomania os que se alinham a fraconfilia, é querer falsificar a
ciência sob o manto da verdade
historiográfica - recurso
último da propaganda lusófila -, da qual não se tem garantia alguma de carta
fundacional mais legitima ou mais verdadeira. Para solucionar esse enigma é
preciso superar os obstáculos que ainda obnubilam a mente dos que se dizem
críticos.
Em suma,
por tudo que foi aqui recolhido em palavras: mito não é mentira, ideologia não
é ilusão e sonho não é um disparate! E, parafraseando o grande poeta portenho
Jorge Luis Borges no poema A Fundação Mítica
de Buenos Aires, concluímos: só na lenda, começou São Luís!
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