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Jean-Pierre Beaurenault e Pedro Silva "Calango" |
Quinta-feira passada, 20 de outubro, ocorreu no
PAPOÉTICO a exibição do documentário “LE BONHEUR EST LÀ-BAS, EN FACE”, um
média metragem filmado no Maranhão na década de 70 (com cenas de São Luís e da comunidade
quilombola rural de Ariquipá – Bequimão), em película 16mm, do cineasta
francês Jean-Pierre Beaurenaut.
Na oportunidade tivemos um breve debate sobre o
filme. Aspectos estéticos e filmográficos foram comentados pelo cineasta Murilo
Santos. A exibição contou com a presença de duas pessoas que residiram na
comunidade de Ariquipá e tem relações de parentesco com o líder comunitário
Pedro Silva "Calango", já falecido (na foto, acompanhado do cineasta
francês).
Cabe ressaltar alguns pontos concernentes as
análises sócio-etnológicas conduzidas pelo autor na construção da narrativa do
documentário. Infelizmente este aspecto não foi muito desenvolvido no debate, que se
seguiu a exibição do filme. Nesse espaço aproveitamos a oportunidade para levar
a frente uma breve reflexão de Antropologia Crítica, que se faz necessária.
Jean-Pierre Beaurenault filmou alguns personagens selecionados
da comunidade de Ariquipá, remanescentes de um antigo engenho e fazenda de cana
de açúcar no município de Bequimão que se deslocaram para São Luís, buscando melhores
condições de vida. O subemprego na Capital do Estado surge como única alternativa
para escapar das condições adversas, no que hoje se chama de comunidade
quilombola. O título do áudio-visual “Le Bonheur est Là-bas, em face” reproduz
a frase expressa por um dos personagens ao justificar seu êxodo para São Luís:
“a felicidade está lá na frente”.
Ao assistir ao filme logo se destaca o esforço do cineasta
em explicitar as formas de exploração econômica sob as quais estão subordinados,
ainda hoje – segundo depoimento e testemunho das duas pessoas presentes – os
membros da comunidade de Ariquipá. A comunidade rural é apresentada com traços
de decadência econômica de longa data; fruto da falência e destruição da antiga
fazenda de Cana-de-Açúcar, montada por colonizadores há mais de duzentos anos
atrás. Abandono das máquinas, abandono dos seres humanos... O filme retrata de
modo sensível, convincente e dramático as condições de pobreza e miséria no Grande Sertão brasileiro.
Registra a presença de crianças sem escola, subnutridas, implicadas na produção
diária de alimentos precários e carentes de nutrientes. A dieta de proteínas é
rarefeita e percebem-se as bases rudimentares de produção alimentícia e de
moradia. As mulheres e as crianças passam as maiores agruras, e os homens
seguem a estrada atrás de dias melhores na capital. Cenas pungentes de quebradoras de coco babaçu,
lavradores, camponeses, extrativistas, etc., isolados da produção industrial, e
do desenvolvimento da sociedade brasileira, desde a década de 1970! Exploração
econômica violenta, aviltante e escandalosa... que persiste!
As bases de análise sócio-etnológicas costuradas na argumentação
narrativa do filme se estrutura evidentemente numa Antropologia Econômica de
cunho marxista. O autor revela com detalhes minuciosos as formas de reprodução
de um estágio primitivo de exploração econômica de homens e mulheres em estado
de espantosa pobreza. Passado mais de trinta anos, e pouco mudou! Como foi testemunhado por uma das pessoas presentes na
exibição, a comunidade apenas recentemente recebeu a primeira ligação de
energia elétrica!
A narrativa do cineasta foi montada a partir de uma
Antropologia Dialética, considerada por alguns antropologistas de plantão como “evolucionista”
ou “etnocentrista”. Antropologistas ditos “relativistas”, que se classificam como pós-modernos, acusam a Antropologia
Econômica de base analítica marxista de ser uma Antropologia ultrapassada, enviesada, anti-relativista e não culturalista.
Podemos colocar, a partir desse filme, uma reflexão
interessante acerca dos alcances de uma Antropologia etnicista, predominante na atualidade. Hodiernamente muitos antropologistas defendem a idéia de que os grupos remanescentes de
antigas fazendas escravocratas sejam grupos étnicos, e que esses grupos, classificados como quilombolas,
possuem ‘cultura’ diferente dos caboclos e sertanejos regionais brasileiros.
E também consideram ‘evolucionista’ (que na boca desses letrados soa como um xingamento terrível) toda Antropologia que revela as bases
econômicas da exploração do homem pelo homem, tanto exógena, quanto endógena. Ouvimos a acusação de que o
cineasta Jean-Pierre Beaurenaut foi etnocêntrico ao não considerar a
importância das manifestações culturais e religiosas, tendo supostamente desconsiderado as
festas e ritos comunitários, deixando de definí-los como traços diacríticos ‘etnicos’.
Hoje a moda dominante entre os pseudo-acadêmicos é supervalorizar os 0,00000001% de
‘diferença’ cultural, definindo como étnico, esses micro-signos de diferença. Etnia é um pseudo-conceito inventado numa
Europa colonialista, e esses antropologistas não se dão ao trabalho de fazer a
história e a epistemologia desse termo. Essa fixação neurótica nas
dessemelhanças minimalistas, só servem para ocultar as formas de exploração
econômicas que existem fora e dentro dessas comunidades. Lamentável postura
mistificadora que insiste em supervalorizar um culturalismo ingênuo - misturado ao folclorismo catolicista - que nega a força política de uma necessária
Antropologia Crítica. Ao atacarem a Antropologia Dialética, esses
antropologistas fazem a apologia da pobreza, através da museologização da
miséria e da patrimonialização do atraso. Nutrem a crença na redenção econômica dessas comunidades através de um turismo eco-etno sustentável! É uma mistura de nostalgismo e
passadismo regressivo, com um antropologismo turistificado e pós-modernista.
O filme em questão é uma verdadeira peça de
denúncia da miséria e da exploração humana. É uma denúncia esclarecida das
bases retrógradas de uma sociedade complacente com a miséria de muitos
brasileiros. No fundo, o etnólogo-cineasta se investe de fortes e sólidas análises
sociológicas sobre os fundamentos do êxodo rural no interior do Estado do
Maranhão. Mostra como as manifestações ditas ‘culturais’ atuam como ‘narcóticos’
para o alívio passageiro, realimentando com poucas medidas as energias do
grupo comunitário, a fim de manter-se vivo naquelas condições econômicas e sociais
deploráveis.
A Antropologia Dialética brasileira merecia um
filme dessa natureza, com essa paixão humanista: um filme desconcertante, revelador, sensível e indignado. A crítica antropológica
heterodoxa, que rema contra a maré modista pos-modernista, irresponsável e
negligente, tem nesse documentário um monumento de lucidez e perspicácia
profunda.
Jean-Pierre
Beaurenault merece todos os nossos aplausos!
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